terça-feira, 18 de março de 2014

breathing away






Estava num daqueles dias em que tudo me fazia sentir cansada; em que não havia maneira de arranjar um passatempo que realmente me aprouvesse e não me relembrasse nada. Doía bastante, realmente. Como quando desfolhamos álbuns de fotografias e nos apercebemos do quão éramos diferentes. A cada passo, desfolhava uma página. E parecia que tinha sido há tanto tempo, que elas se desenhavam a amarelas e cheiravam a bolas de naftalina. Mas o cheiro que sentia a cada movimento não era esse - era mais familiar, mais denso de lembranças. Bastava simplesmente tentar remexer o cabelo para que não me tapasse a vista enquanto lia, que me vinha à memória a tua imagem, o teu olhar terno e sedento de amor, a colocar-me uma mecha de cabelo atrás da orelha. E presa a essa memória, tantas outras se seguiam, como se fossem um grupo de jogadores de futebol, todos eles semelhantes a ti: quando me acordavas com um beijo na testa, quando lias para mim, quando víamos uma comédia romântica - sempre as achavas cliché, mas apreciavas porque sabias que eram das minhas favoritas - enquanto bebíamos coca-cola barata. Depois de terminar mais um capítulo, levantava-me do meu sofá em frente à janela e ia para a cozinha. Enquanto cortava uma pêra, via-me na perspetiva da minha querida mãe, a virar-se para trás porque eu tinha a mania de lhe desfazer o laço do avental, inconsciente de que isso só ia demora-la mais. Quando me estendia a pêra cortada aos pedaços eu sorria e, no mais íntimo de mim, sabia que amá-la-ia para sempre. Ao dirigir-me para o quarto para fazer a minha cama, apercebo-me que, enquanto dormia, tinha deixado as meias no meio dos lençóis, e relembrava-me de quantas vezes a minha avó me repreendia por isso, pois sabia que eu não iria dar conta e andaria o resto do dia descalça pela casa. Por isso ajudava-me sempre a fazer a cama para encontrar as meias e, ao encontra-las, sentava-me em cima da cama e enquanto eu baloiçava os pés, ela lutava com eles para me calçar as meias. Depois de ter os lençóis e os cobertores recostados, coloco o meu peluche no centro da cama... Nesse momento sou transportada para aquele mesmo quarto mas com uma cama e colcha diferentes. O quarto tem um cheiro a canela que sei vir da cozinha, pois reconheço-o; é o tradicional bolo do começo da Primavera que a minha tia fazia quando eu ainda nem sequer falava. Na cama estava deitado o meu avô, vítima de Alzheimer diagnosticado há dias atrás mas a agir como se nada se passasse: cachimbo na boca, um livro nas mãos e óculos na ponta do nariz. O seu gato estava aninhado no centro da cama, e eu tentava acaricia-lo, nunca conseguindo. Nunca compreendi porque é que o meu avô não parou de fumar quando a saúde lhe faltou, mas agora compreendo-o: carpe diem. Ele só queria aproveitar o resto da sua vida, e foi exatamente o que fez. Gostava imenso dele. Abraçava-me calorosamente sempre que me via, como se fosse a última vez, e dizia-me ao ouvido "Minha pequena, nunca deixes algo que ames para trás". Nunca me esqueço da sensação que tinha no seu abraço, revivo-a de cada vez que me sinto triste, e aí sei que nunca estarei só. Por fim, o meu órgão pensador decide alterar-me a perspetiva e obriga-me a encarar o que ainda aí vem; quer que eu sonhe, que divague. Nunca gostei de o fazer porque receio que o que ambiciono não se concretize. Mas sou empurrada para o precipício, e em vez de me passar o que vivi pela mente, passa-me o que não vivi: tu, os nossos filhos, aninhados no sofá do nosso apartamento a jogar Monopólio; os meus pais a levá-los à escola; nós a viajar; eu a trabalhar e a sorrir; tu a enviar-me mensagens quando estás longe; nós no lançamento do meu livro; nós idosos, os nossos filhos a crescerem, e eu a rever-me na minha mãe. Nesse preciso momento, é como se sentisse um pequeno enfarte e o meu coração bate mil e uma vez num único segundo. Ouço e sinto o sangue correr-me pelas veias como se pretendesse cobri-las numa única vez. Os meus ouvidos zunem, e os meus olhos saem das suas órbitas. É como se tivesse ido à Lua e voltado, num só momento. Saio da água, o cabelo escorre-me pelas costas e recupero o fôlego, como se estivesse há horas naquele mergulho ao infinito, ao que fui e quero ser, às águas do passado num lago do futuro, e volto a ser eu. Neste dia, neste momento, neste local. Eu.